Ontem, no sufoco, o Brasil
precisou dos pênaltis para passar para as quartas-de-final, evitando uma
eliminação que poderia ser traumática ao futebol brasileiro. Ao contrário das
outras três oportunidades em que o Brasil enfrentou o Chile em Copas e ganhou com tranquilidade (a primeira em 62, no Chile, na semifinal - com Garrincha
como protagonista - e as duas últimas em oitavas-de-final), ontem o jogo não foi
nada fácil.
Após a partida, foi comum
perceber nas redes sociais e nas conversas com amigos a procura pelas razões
das dificuldades encontradas: a imobilidade do Fred, a marcação sobre Neymar, a
falta de articulação no meio campo, os erros individuais, etc. Mas se houve algo
que realmente envergonhou a todos foi a vaia de parte da torcida presente ao
estádio para o hino chileno cantado à capela.
Não me lembro de alguma ocasião em
que tal estupidez tenha ocorrido. Nem mesmo nos anos de guerra fria em
confronto entre países rivais atitude tão vil foi presenciada. E parar piorar, foi
feita justamente para um país sul-americano, com uma história tão próxima da
nossa.
Este triste episódio ocorreu
justamente enquanto Chile e URSS estavam disputando uma vaga na repescagem para
a Copa do Mundo de 1974. Após empate no primeiro jogo em Moscou em 0 x 0, a
URSS solicitou a Fifa que alterassem o jogo de volta para não jogar no Estádio Nacional,
que havia se transformado em verdadeiro campo de concentração. Diante da recusa
em alterar o local, a URSS optou por não comparecer e no dia 21 de novembro a
seleção chilena entrou em campo sozinha. O árbitro deu início de partida com
apenas uma seleção em campo. Seus jogadores tocaram a bola até Valdéz concluir
contra o gol “adversário” vazio: https://www.youtube.com/watch?v=Fb5KpkSajpw
Um dos principais jogadores
daquela seleção chilena esteve em campo a contragosto: Carlos Cazsely, "El Chino". Trata-se
de um dos maiores atacantes da história do Chile que além de artilheiro nos
times e na seleção, conseguiu levar o Colo-Colo para a final da Copa
Libertadores em 1973, competição na qual acabou como artilheiro (o primeiro e
único jogador chileno a atingir este feito). Tornou-se uma verdadeira lenda em
seu país, fato que nem o pênalti perdido na Copa de 82 conseguiu apagar.
Se era craque dentro de campo,
fora teve um desempenho ainda mais relevante. Trata-se de um dos poucos
esportistas da América do Sul que se levantou contra ditaduras daquela época. Opositor
ao ditador Pinochet, Cazsely nunca teve medo de emitir suas opiniões políticas
e negava-se a cumprimentar o ditador
enquanto era jogador da seleção chilena. Perseguido pelo regime durante o auge
da sua carreira, teve sua mãe presa e torturada e precisou jogar em times
espanhóis.
Após encerrar a carreira, encampou
sem medo a campanha pelo “Não” no plebiscito que decidiria, em 1988, se Pinochet
poderia ou não concorrer a mais um mandato de 8 anos. Com o seu prestígio, contribuiu
para o fim da ditadura, motivo de grande celebração no país, sob o lema “Nunca
mais!”. Neste vídeo, Cazsely fala sobre este período e aparecem imagens dessa
época: https://www.youtube.com/watch?v=BXcK-CFAhCI
Enfim, trata-se de exemplo de
luta não só dentro de campo, mas fora dele também, já que no meio futebolístico
é muito difícil ver alguém com atitudes políticas tão corajosas.
Por fim, este Blog optou por
fazer deste relato uma homenagem não só ao Cazsely por tudo que representou ao seu
país, mas ao povo chileno que merecia muito mais respeito por parte do público
que esteve no estádio ontem e envergonhou a história das Copas ao vaiar um hino
nacional.
Assim como o Chile celebrou em
1990 o “nunca mais” ao regime militar, espero que nunca mais aqueles que têm
frequentado estádios na Copa tenham atitudes tão lamentáveis.