quarta-feira, 29 de junho de 2016

Ruud Gullit, o legítimo herdeiro de Cruyff (nos gramados e fora dele)

Foto da edição da Placar com a retrospectiva de 1988, com Ruud Gullit beijando o troféu.

A história do futebol é repleta de casos em de grandes craques que não conquistam títulos relevantes por suas seleções e Cruyff foi um desses. Embora tenha sido o responsável direto por colocar a Holanda no mapa da bola, ficou com o vice-campeonato da Copa do Mundo em 1974, parou na semifinal da Eurocopa de 1976 diante da Tchecoslováquia e em 1978 abriu mão de participar da Copa do Mundo quando sua geração da Holanda ficou novamente com o vice-campeonato.

Mas no caso específico da Holanda, a justiça foi feita com a geração seguinte, liderada por Ruud Gullit, verdadeiro herdeiro do futebol de Cruyff no time. 

Craque que se consagrou entre final dos anos 1980 e início dos 1990, o polivalente jogador, famoso por sua cabeleira, passou pelo Feyenoord justamente quando Cruyff se despedia dos gramados no mesmo time na temporada 1982-83. Anos mais tarde, já consagrado, Gullit relatou esse momento:

"Minha primeira recordação real no futebol foi no mundial de 1974, o gol de Johan Cruijff sobre o Brasil. É algo que sempre levo em mente. Cruyff me ensinou muitíssimo. Coincidi com ele em sua última temporada como jogador, no Feyenoord, no início dos anos 80. Era inteligentíssimo. Taticamente estava acima do resto.(...) Eu o olhava e pensava: 'Tem 38 anos e é muito bom. O que deve ter sido jogar com este homem quando tinha 24?' E a verdade é que nunca tive noção da resposta".[1]

Em 1988, ao lado de craques como Van Basten e Rijkaard (com quem ganhou também o campeonato italiano daquele ano), Gullit levou a seleção holandesa sob o comando de Rinus Michels (o mesmo técnico de 1974) ao título da Eurocopa, ironicamente disputada na então Alemanha Ocidental, a mesma que sediou a Copa do Mundo de 1974, depois de despachar a dona da casa na semifinal. 

Após vencer a União Soviética na final por 2 x 0 com gols de Gullit e Van Basten (esse último, um golaço), a Holanda enfim comemorou um grande título ao som de We are de Champions no estádio. No youtube tem um bom documentário sobre esse jogo: https://www.youtube.com/watch?v=0ufZKwBG-ZI

Os títulos que Cruyff não conseguiu sobraram na carreira de Ruud Gullit em todos os times que jogou (Haarlem, Feyenoord, PSV, Milan, Sampdoria e Chelsea - onde foi ao mesmo tempo técnico e jogador). Dotado de muitas qualidades técnicas e excelente conhecimento tático, colecionou troféus particulares também. Em 1987, já no vitorioso Milan daquela época, Gullit foi eleito o melhor jogador da Europa [2]. Politizado como era, preparou um discurso em que homenageava Nelson Mandela, que se encontrava ainda preso e incomunicável pelo regime do Apartheid. O sua atitude política toma uma dimensão maior ao lembrarmos que os responsáveis pelo regime de segregação racial em vigor na África do Sul tinha sido imposto pelos boêres (ou africâners), descendentes de holandeses que colonizaram aquele país.

Infelizmente sua fala foi censurada, mas mesmo assim ele dedicou seu prêmio ao Mandela durante os agradecimentos e entregou uma cópia do discurso que pretendia fazer a cada um dos presentes na cerimônia. E sua luta anti-apartheid continuou na música. No anos seguinte, em 1988, ele participou da gravação do reggae South Africa em prol da causa anti-apartheid da banda Revelation Time, que alcançou o terceiro lugar nas paradas holandesas. Vale a pena conferir: https://www.youtube.com/watch?v=iDDHiJqsQas. Gullit não era um iniciante na música. Quatro anos antes já havia gravado a música Not the Dancing Kind: https://www.youtube.com/watch?v=RhmJFOa4RgQ

Em 1990, depois de 27 anos preso, finalmente Nelson Mandela foi libertado e posteriormente conseguiu ser eleito presidente da África do Sul, terminando o regime segregacionista. Ciente da ajuda que recebeu de Gullit não só pelo discurso, mas por doações que o craque holandês fazia à causa, em 1997 Mandela concedeu ao jogador a Ordem do Comendador da Boa Esperança, maior condecoração na África do Sul, no First Nacional Bank (FNB) Stadium, onde a seleção da África do Sul (Bafana-Bafana) enfrentou a Holanda.[3]

Encontro de Gullit com Mandela

Ruud Gullit foi, de fato, merecedor dessa homenagem. Ao longo da sua vitoriosa carreira sempre se preocupou em lutar contra o racismo e pelo fim do regime de segregação racial. Gullit não fez justiça apenas nos gramados ao levar a Holanda ao título europeu, mas conseguiu ter brilho maior ainda na sua luta por uma sociedade mais justa. Que ele sirva de inspiração para os craques do mundo de hoje. 


Notas:
[1] Informação obtida na página http://www.superesportes.com.br/app/1,1128/1,1128,1,1091/noticia-mundial-de-clubes/1,1128,1,200/1,200,1,131/1,131,1,307/1,307,1,130/1,130,1,200/1,200,19,88/19,88,1,17/1,17,1,15/1,15,20,25/20,25,1,131/1,131,1,307/1,307,1,188/1,188,20,17/20,17,1,692/1,692,7,348/7,348,1,522/2012/06/05/noticia_por_onde_anda,218765/, que divulgou a entrevista original fornecida à revista France football
[2] Naquela época, não havia eleição oficial da FIFA para melhor do mundo em cada ano, mas as eleições da revista France Football que resultava no prêmio Bola de Ouro (França) tinha a representatividade de eleger o melhor jogador europeu. A partir de 2010, sua premiação foi unificada com a da FIFA. Além da Bola de Ouro, a revista World Soccer (Inglaterra) também faz eleição representativa desde 1982. Ruud Gullit levou a Bola de Ouro em 1987 e duas vezes considerado o melhor europeu pela World Soccer (1987 e 1989).
[3] Paper: “Ruud Gullit. Soccer, Racism and Apartheid” ISSN - 1481-3440 obtido em http://www.anthroglobe.org/docs/Racism-soccer-South%20Africat.htm


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