sexta-feira, 3 de junho de 2016

Sócrates, Brasileiro de Renome



Nos últimos tempos tem sido cada vez mais comum diferentes torcidas de times como a do Vasco, do Santa Cruz e do Corinthians se manifestarem politicamente nos estádios, se posicionando contra roubo de merenda, monopólio de determinada rede de televisão e, principalmente, contra o golpe.

Assistindo esse momento atual, lembrei-me imediatamente do jogador brasileiro mais politizado que vi jogar: Sócrates, que levava Brasileiro no nome e na alma. Não separo jogador dentro e fora de campo. Me interesso pelo que pensa, o que faz cada craque que vi jogar. E Sócrates, sem dúvida, foi um jogador diferenciado que se destacava não só pelo futebol refinado, que tinha no toque de calcanhar sua marca registrada, mas também pela sua autenticidade, sua postura fora de campo e seu interesse em causas políticas e sociais.

Sócrates chegou no Corinthians no final da década de 1970,  sob a direção do lendário Vicente Matheus. Além do fato de ter feito medicina em Ribeirão Preto enquanto já se destacava no Botafogo da mesma cidade, tendo se sagrado artilheiro do campeonato paulista de 1976,  o “Doutor” (como passou a ser conhecido) tinha outra peculiaridade: seu gosto por música brasileira, passando desde a música caipira de raiz até a MPB.

Como resultado, em 1980 gravou um disco com clássicos do sertanejo de raiz paulista. Com 12 músicas, merece destaque “Luar do Sertão”, (https://www.youtube.com/watch?v=zwqAvhkUtk4), um verdadeiro hino do sertanejo, de autoria de Catulo da Paixão Cearense com João Pernambuco (embora haja uma certa polêmica em torno disso (1).

Coincidentemente, foi após a gravação desse disco que seu viés mais politizado foi se tornando mais conhecido. A partir de 1981, já sob a direção do Waldemar Pires, e com o time enfrentando uma crise que levou-o a disputar a Taça de Prata no campeonato brasileiro de 1982 (2), Sócrates, ao lado de um jovem diretor de futebol e sociólogo Adilson Monteiro Alves,  liderou um movimento dentro do time que acabou conhecido como “Democracia Corinthiana” (nome batizado pelo publicitário  Washington Olivetto). Basicamente esse movimento se consistia no fato de todas as decisões do time passarem a ser decididas pelo voto, que incluía desde os principais jogadores até mesmo o roupeiro ou massagista. Isso tornou-se simbolicamente mais relevante pelo fato de que naquela época o país ainda vivia sob uma ditadura militar.

Após encantar o mundo com a seleção de 1982, Sócrates, juntamente com outros líderes da Democracia Corinthiana como Casagrande e Wladimir, foram assumindo um protagonismo cada vez maior tanto dentro como fora de campo. Nessa época, durante as primeiras eleições diretas para governadores desde o golpe militar, eles chegaram a entrar em campo com a mensagem "Dia 15 Vote" na camisa, algo que gerou repreensão da ditadura na época.

Sócrates com a polêmica camisa conclamando a população a votar.

Outro episódio interessante deles nesse época foi a participação em um show da Rita Lee em São Paulo, retratada no filme Democracia em Preto e Branco, narrado pela própria Rita (3): https://www.youtube.com/watch?v=RX_koIhCYc4. Vale a pena conferir.

Em 1984, Sócrates participou intensamente da campanha pelas Diretas Já, que visava aprovar a emenda constitucional Dante de Oliveira para reestabelecer as eleições diretas para presidente da república. Como naquela época já havia interesse de times do exterior pelo futebol dele, Sócrates chegou a manifestar publicamente em um dos imensos comícios pelas Diretas que se a emenda fosse aprovada, ele não iria embora do país: https://www.youtube.com/watch?v=XvgK587hV3M .

Infelizmente a emenda foi rejeitada, o povo teve que esperar mais tempo para voltar a eleger um presidente, e o Brasil perdeu o futebol do Doutor, que foi exibir seu talento nos gramados italianos, contratado pela Fiorentina.

Antes de ir embora, ainda deixou registrado a sua paixão pelo Corinthians em uma música de sua autoria e gravada em parceria com Simone Guimarães: “Festa Corinthiana”: https://www.youtube.com/watch?v=x68ZbhIMRaE

Quando retornou, depois de “quase” defender a Ponte Preta (chegou a aparecer na Capa da revista Placar com a camisa da macaca), passou pelo Flamengo e pelo Santos antes de se despedir do futebol no Botafogo (SP), clube que o revelou.

Recebeu ainda diversas homenagens, como uma bela canção do santista José Miguel Wisnik, gravada por Ná Ozétti: Sócrates Brasileiro: https://www.youtube.com/watch?v=JBpBlHHUjG4

"Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira
Deu um pique filosófico ao nosso futebol
O sol caiu sobre a grama e se partiu
Em cacos de cristais
As cores vestiram os nomes
E fez-se a luta entre os homens
Até os apitos finais (disseram os deuses imortais) (...)"


Mesmo fora dos gramados, continuou durante muito tempo contribuindo por uma visão crítica e politizada do futebol e da sociedade através de artigos que escrevia para a revista Carta Capital ou ainda em alguns programas esportivos, sempre como crítico da estrutura corrupta existente na CBF e nas federações estaduais de futebol.

Infelizmente, em 2011, com 57 anos, Sócrates acabou falecendo vítima de uma infecção generalizada causada por bactéria, muito provavelmente consequência do consumo prolongado do álcool.

Perdeu o país um dos seus maiores representantes e que hoje, certamente, estaria novamente empenhado na luta pela democracia e contra o golpe que infelizmente querem impor às custas de direitos sociais arduamente conquistados. Dentro e fora de campo, o Brasil sente muita a falta do Sócrates.  

(2): naquela época, os campeonatos estaduais anteriores serviam para definir quais clubes participariam da Taça de Ouro (equivalente à primeira divisão) e da Taça de Prata (equivalente à segunda divisão). Como o Corínthians ficou apenas em oitavo no Campeonato Paulista de 1981, acabou não se classificando direto para a Taça de Ouro. Entretanto, o regulamento previa que quatro times da Taça de Prata subissem durante o campeonato, e o Corinthians, já com influência da Democracia Corinthiana, acabou sendo um desses 4.


(3) quem tiver Netflix, pode conferir o filme “Democracia em Preto e Branco” na íntegra. Ou até mesmo no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=qGwZ7St7v34

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