domingo, 29 de junho de 2014

Chile: vaias ao hino...nunca mais!

Allende e Cazsely

Ontem, no sufoco, o Brasil precisou dos pênaltis para passar para as quartas-de-final, evitando uma eliminação que poderia ser traumática ao futebol brasileiro. Ao contrário das outras três oportunidades em que o Brasil enfrentou o Chile em Copas e ganhou com tranquilidade (a primeira em 62, no Chile, na semifinal - com Garrincha como protagonista - e as duas últimas em oitavas-de-final), ontem o jogo não foi nada fácil.

Após a partida, foi comum perceber nas redes sociais e nas conversas com amigos a procura pelas razões das dificuldades encontradas: a imobilidade do Fred, a marcação sobre Neymar, a falta de articulação no meio campo, os erros individuais, etc. Mas se houve algo que realmente envergonhou a todos foi a vaia de parte da torcida presente ao estádio para o hino chileno cantado à capela.

Não me lembro de alguma ocasião em que tal estupidez tenha ocorrido. Nem mesmo nos anos de guerra fria em confronto entre países rivais atitude tão vil foi presenciada. E parar piorar, foi feita justamente para um país sul-americano, com uma história tão próxima da nossa.

Um dos fatos mais lamentáveis que une Brasil e Chile foi o fato de terem sido, ambos, cenários de golpes militares em períodos próximos. Enquanto o Brasil teve seu golpe em 1964, no Chile, o ano trágico foi 1973, mais precisamente no 11 de setembro deles quando o Palácio de La Moneda sofreu ataques sob a liderança do Gal. Pinochet, tirando da presidência o governo democraticamente eleito de Allende que acabou morrendo. Nos dias seguintes, o Estádio Nacional, local feito para espetáculos de futebol, serviu como palco de horror para mais de 12 mil presos políticos, detidos e torturados.

Este triste episódio ocorreu justamente enquanto Chile e URSS estavam disputando uma vaga na repescagem para a Copa do Mundo de 1974. Após empate no primeiro jogo em Moscou em 0 x 0, a URSS solicitou a Fifa que alterassem o jogo de volta para não jogar no Estádio Nacional, que havia se transformado em verdadeiro campo de concentração. Diante da recusa em alterar o local, a URSS optou por não comparecer e no dia 21 de novembro a seleção chilena entrou em campo sozinha. O árbitro deu início de partida com apenas uma seleção em campo. Seus jogadores tocaram a bola até Valdéz concluir contra o gol “adversário” vazio: https://www.youtube.com/watch?v=Fb5KpkSajpw

Um dos principais jogadores daquela seleção chilena esteve em campo a contragosto: Carlos Cazsely, "El Chino". Trata-se de um dos maiores atacantes da história do Chile que além de artilheiro nos times e na seleção, conseguiu levar o Colo-Colo para a final da Copa Libertadores em 1973, competição na qual acabou como artilheiro (o primeiro e único jogador chileno a atingir este feito). Tornou-se uma verdadeira lenda em seu país, fato que nem o pênalti perdido na Copa de 82 conseguiu apagar.

Se era craque dentro de campo, fora teve um desempenho ainda mais relevante. Trata-se de um dos poucos esportistas da América do Sul que se levantou contra ditaduras daquela época. Opositor ao ditador Pinochet, Cazsely nunca teve medo de emitir suas opiniões políticas e  negava-se a cumprimentar o ditador enquanto era jogador da seleção chilena. Perseguido pelo regime durante o auge da sua carreira, teve sua mãe presa e torturada e precisou jogar em times espanhóis.

Após encerrar a carreira, encampou sem medo a campanha pelo “Não” no plebiscito que decidiria, em 1988, se Pinochet poderia ou não concorrer a mais um mandato de 8 anos. Com o seu prestígio, contribuiu para o fim da ditadura, motivo de grande celebração no país, sob o lema “Nunca mais!”. Neste vídeo, Cazsely fala sobre este período e aparecem imagens dessa época: https://www.youtube.com/watch?v=BXcK-CFAhCI

Enfim, trata-se de exemplo de luta não só dentro de campo, mas fora dele também, já que no meio futebolístico é muito difícil ver alguém com atitudes políticas tão corajosas.

Por fim, este Blog optou por fazer deste relato uma homenagem não só ao Cazsely por tudo que representou ao seu país, mas ao povo chileno que merecia muito mais respeito por parte do público que esteve no estádio ontem e envergonhou a história das Copas ao vaiar um hino nacional.

Assim como o Chile celebrou em 1990 o “nunca mais” ao regime militar, espero que nunca mais aqueles que têm frequentado estádios na Copa tenham atitudes tão lamentáveis.

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